Relatórios Bobológicos

O 1º ano de Marcelo ‘Mingal’ Marcon, o Palhaço Besteirologista do Instituto Sociocultural

20 de Setembro | 2019

Minha história começa aos 3 anos de idade, quando minha mãe me perguntava o que eu queria ser quando crescesse. Eu respondia: “Palhaço”. Eu chegava a usar uma pomada no rosto para me cobrir de branco. Sempre quis viver disso. Com o passar do tempo, fui crescendo e amadurecendo minha ideia, mas, naquele tempo, você precisava ter nascido no circo, porque não existia escola para ser palhaço. Aos 26 anos, vi um documentário sobre o Doutores da Alegria ( artistas que atuam para crianças, adolescentes e outros públicos em hospitais ). Eu já era ator e pensei: “É isso que quero fazer”. Vi que unia arte e projeto social. Comecei a trabalhar no Doutores da Alegria em 2010.

No ano passado, eu ainda morava em São Paulo e, pelo Doutores da Alegria, visitava crianças hospitalizadas. Foi quando tive muita falta de ar e comecei a tossir sangue. Corri para um hospital, fui em um médico do convênio. Fiz uma radiografia e falaram que eu não tinha nada. Até pedi uma tomografia, mas no pronto atendimento me disseram que eles só poderiam fazer se tivesse dado algo na radiografia. Disseram que poderia ser garganta, nariz, e, como eu estava com dois espetáculos que exigiam muito da voz, achei que poderia ser isso. Ainda assim, continuei a investigar. Por último, fui a um pneumologista. Foi quando ele pediu a tomografia, que diagnosticou um nódulo no brônquio direito. Fizeram uma biópsia e deu câncer.

Um amigo me alertou que eu deveria ouvir uma segunda opinião e que uma grande referência para o tratamento de câncer no Brasil era o Hospital de Amor, em Barretos, no interior de São Paulo. Já estava com a minha cirurgia agendada em São Paulo, mas pediram que eu fosse para uma consulta em Barretos. Depois de uma reunião, os médicos me disseram que eu não perderia meu pulmão. Me deram esperança. Repetiram todos os meus exames, e um outro diagnóstico acabou comprovando que não era um tumor de alto grau de metástase.

Em Barretos, o chefe da oncopediatria quis me conhecer e disse: “Um câncer muda muito as pessoas. Com certeza, depois que você passar por todo esse processo, vai ser uma pessoa diferente”. Ele propôs que eu fizesse parte da equipe como palhaço. Fiz a cirurgia em 18 de setembro de 2018 e me mudei de São Paulo para Barretos em 7 de março de 2019, para trabalhar com as crianças. Meu trabalho é remunerado por meio do Instituto Sociocultural do Hospital de Amor.

Depois de passar por um câncer e estar no lugar de paciente, minha intervenção com as crianças acabou se tornando muito potente, porque sei o que é uma família receber o diagnóstico. O chão não cai só para quem é paciente. Isso afeta toda a família. A princípio, a sensação é de receber uma sentença de morte. Logo no começo, no meu papel de palhaço Mingal, tive um misto de sensações. Era uma felicidade incrível começar o projeto com as crianças, mas também era algo que me dava apreensão. Como eu reagiria trabalhando com a realidade que eu tinha acabado de vivenciar?

Um dia, já com saúde para desenvolver o ofício de palhaço, sentei no meio-fio e comecei a chorar. Antes de entrarmos nos quartos para atuar, vamos a uma ilha de enfermagem para pedir algumas informações sobre os pacientes. Perguntamos sobre se há casos de isolamento de contato, qual quarto não podemos entrar, quais pacientes estão com máscaras, quais crianças acabaram de sair do centro cirúrgico e não podem rir, por exemplo. É um procedimento normal de nosso dia a dia. Uma vez, uma enfermeira me disse: “Mingal, entra no quarto 12 porque a paciente acabou de entrar em estado paliativo e a mãe tentou suicídio”. Perguntei a mim mesmo: “Ali tem espaço para graça?”. Mas minha principal função, após tudo que passei e vivenciei, é construir relações saudáveis, não dialogar com a doença, mas sim com aquilo que é saudável. Não é simplesmente fazer graça, é levar a alegria.

Entrei no quarto e perguntei se tinha passado um “besteirologista”, especialista em fazer besteiras mesmo, que cuida de bobagens. Nossas especializações são chulé encravado, pum solto, pulga atrás da orelha, riso frouxo. Quando bati na porta, a menina, que tinha uns 12 anos e estava com a mãe, o avô e a tia, me disse assim: “Oxi, bichinho, não passou, não”. Vi que aquele sotaque era diferente e perguntei de onde eles eram. Responderam que eram da Bahia. Como eu toco violão, comecei a cantar uma música e disse para todos jogarem as mãos para o alto, que aquele era o “Bloco do Suvaco”. Fizemos um Carnaval fora de época. Vi o avô sambando no miudinho, a mãe requebrando até o chão, a menina, na limitação dela como paciente, jogando as mãos de um lado para o outro, como se estivesse no Olodum. Naquela relação que construímos, dialogamos com as raízes deles. O câncer não é só uma doença grave. É uma doença que tira a pessoa de seu convívio por causa do tratamento. Nas intervenções, os palhaços devolvem às famílias a oportunidade de reencontrar suas raízes. Lembro que olhei para a mãe e ela estava com um olhar sorridente. Eu disse assim: “Lembre-se de onde você veio. O baiano tem esse rebolado porque tem um bom jogo de cintura para passar por qualquer adversidade e não esmorecer. Então, força”. E a gente saiu tocando. Eu me recordo do olhar dela e de quanto aquela atuação a renovou.

Hoje, aos 38 anos, faço acompanhamento de seis em seis meses. Meu estado é estável, com uma boa projeção. Com a doença, percebi quanto nossa vida é frágil. Estava acostumado a visitar o doente, mas não esperava que um dia seria eu o doente. Estou trabalhando como Mingal três vezes por semana, com outros dois palhaços, Rubi e Brisa. Começamos por volta das 9 horas, visitando cerca de 250 crianças de toda a ala oncopediátrica. O período de tratamento das crianças é longo, então a gente constrói laços também com familiares e profissionais de saúde. Investimos bastante neles. São eles que acompanham as crianças por muito tempo. É um local onde vivenciamos os extremos: da felicidade de uma alta à tristeza de uma morte. Mas as crianças são como mestres. Elas vivem o presente. Não estão preocupadas. Choram na hora em que são picadas por uma agulha, não antes. Não pensam que vão morrer amanhã. Independentemente do estado de saúde, driblam a morte. Elas sempre têm um lado saudável que quer brincar.

Matéria publicada na Revista Época dia 22 de setembro de 2019.

Link da matéria: epoca.globo.com

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O Hospital de Amor (atual nome do Hospital de Câncer de Barretos) recebe pacientes de todos os estados do Brasil, oferecendo atendimento 100% gratuito. A instituição conta com profissionais altamente qualificados e realiza um importante trabalho para aumentar os índices de cura e sobrevida. Porém, nada disso seria possível sem o apoio dos diversos segmentos da sociedade, como pessoas físicas e empresas.

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