Relatórios Bobológicos
Ausência
27 de Maio | 2021 Escrito por Palhaço Figuerino
O trabalho de Palhaço é cheio de encontros dos mais variados, alguns inusitados, outros mais comportados, outros espalhafatosos, mas o que geralmente não muda é que todos esses encontros provocam alguma sensação, que muitas vezes para o paciente, acompanhante ou profissional de saúde, acaba sendo um momento de descontração, um relaxamento, uma crise de riso, e quando isso acontece, nós, palhaços, saímos do hospital com uma sensação de dever
cumprido.
Mas é logo após os momentos de intervenção, começando no vestiário, ainda se trocando, enquanto tiramos o figurino, a maquiagem, que a intensidade dos encontros que vivenciamos começa a ser percebida de outra forma, ganhando outras dimensões a partir das reflexões sobre o trabalho. Esses pensamentos permanecem e nos acompanham durante os dias, e com a mente aberta para tentar entender a complexidade de sentimentos que esse oficio nos gera é hora de
aprofundar o olhar acerca do que foi vivido, buscando explorar o poder do encontro.
E como são potentes os encontros dentro no Hospital de Amor!
Um desses momentos marcantes, que ficam gravados em nossos corações foi o reencontro com um paciente muito valente que enviou juntamente com os seus familiares uma missão para os Palhaços da Alegria, Dr. Figuerino e Dr. Mingal.
A missão dada, foi a solicitação de uma visita no quarto de uma criança em tratamento, que estava com muita saudade da visita dos palhaços, pois por conta de algumas complicações hospitalares, e outras questões, não estava podendo receber visitas.
Por conta disso, para completar essa missão tivemos que nos paramentar com todos os equipamentos de proteção necessários para entrar no quarto, tudo isso seguindo as orientações dos profissionais de saúde.
Devidamente protegidos, e com as bobeiras engatilhadas, foi dado início a missão.
Logo no primeiro momento, percebemos o nosso objetivo, um garotinho pequeno deitado na cama junto com sua mãe. O pai estava ao lado observando a nossa entrada, atento a reação do filho, que permanecia um tanto cabisbaixo, meio chateado, mas ao fazer contato visual com os palhaços, já ficou alerta.
Chegamos devagar, e notamos que a mãe do paciente estava junto com ele na cama, dando aquele afago, aquele gostoso carinho de mãe, que só de lembrar já vem aquela sensação de acolhimento. Entre puxadas de assuntos, conversas fiadas e outras bobagens, nós como bons besteirologistas observadores, logo percebemos que havia no quarto uma outra cama que era destinada aos acompanhantes, e se a mãe estava na cama do paciente junto com ele, e o pai
estava em pé ao lado, a outra cama estava vazia, e estando vazia, alguém poderia ocupa-la, mas quem?
Iniciou-se uma discussão para decidir quem ficaria com a cama vazia, com as mais diversas teorias e justificativas, regadas com momentos de risos, a princípio tímidos, mas cada vez mais soltos, até que o nosso paciente foi se deixando levar pelas gargalhadas, seguidas dos sorrisos da mãe e do pai. A discussão se encerrou quando foi decidido que para deitar naquela cama, só depois de tomar banho, sendo assim a saída do Dr. Figuerino e Dr. Mingal, foi diretamente para o chuveiro.
A brincadeira que aconteceu naquele quarto, foi uma bobeira, daquelas boas, que todos participam, os sorrisos florescem, e a sensação de ter cumprido a missão que nos foi dada é tão boa quanto o som das risadas.
Mas o que mais aconteceu naquele quarto?
Ali, naquele quarto havia muita coisa acontecendo. Coisas das quais nem sabemos e nunca saberemos os porquês. E não é que nós, “os palhaços” não temos respostas, até poderíamos formular várias possibilidades para levar luz a essa questão, trazendo ideias das mais mirabolantes, teses de pesquisa, aprofundadas em fundamentos da besteirologia, e claro que tudo isso poderia render bons risos, ou outras formas de enxergar o que estava acontecendo ali,
mas no fundo nem nós palhaços, nem o pai ou a mãe, nem os profissionais de saúde, nem mesmo os médicos especialistas tem uma explicação para certas perguntas.
Era uma luta. Das mais intensas. Das mais dolorosas.
Uma luta interna, de todos ali no quarto. Da mãe e do pai, ambos batalhando intensamente com seus sentimentos, buscando forças e maneiras de dar apoio ao pequeno filho, que por sua vez tinha uma outra luta interna, diferente, biológica, física, microscópica, dentro dele todo o seu organismo tentava combater uma doença grave, devastadora.
Alguns dias se passaram, e recebemos a notícia, que aquela tinha sido a última visita no quarto daquele paciente e de sua família.
Em meio ao luto, os sentimentos ficam bagunçados, aquelas perguntas que não tem respostas não param de fervilhar na mente, imaginamos a dor para a família que segue, sem mais a presença de uma parte tão importante de sua composição.
Em momentos como esse, de dor, pesar, e de muita compaixão, revisitamos todos os encontros que tivemos com esse paciente e sua família, acompanhando sua trajetória, desde o início do tratamento até os seus últimos dias. Lembrando das histórias malucas que foram criadas, das brincadeiras, e principalmente da missão que nos foi dada por ele, requisitando a nossa visita.
Tudo isso, me faz pensar que de alguma forma, fomos importantes durante o tratamento dele, que de alguma maneira, fizemos diferença nos longos dias internados no hospital, e que infelizmente em certos momentos não pudemos visita-lo, mas torcíamos ansiosos pelo próximo encontro, e soubemos que ele também esperava, com saudade.
Saudade essa que fez com que ele mesmo resolvesse…
Ele desenhou os palhaços que os visitava, e deixou na janela para matar a saudade.
Saber que a visita dos besteirologistas faz falta, que os pacientes solicitam as nossas intervenções, fazem desenhos e colocam na janela, para suprir a ausência, de alguma forma nos fortalece para continuar esse trabalho, sempre acreditando na promoção de saúde e no poder que um momento de descontração exerce dentro do ambiente hospitalar.
Guilherme Figueiredo
Palhaço Figuerino
Barretos
Hospital De Amor Infanto-juvenil
Abril – 2021
Doações
O Hospital de Amor (atual nome do Hospital de Câncer de Barretos) recebe pacientes de todos os estados do Brasil, oferecendo atendimento 100% gratuito. A instituição conta com profissionais altamente qualificados e realiza um importante trabalho para aumentar os índices de cura e sobrevida. Porém, nada disso seria possível sem o apoio dos diversos segmentos da sociedade, como pessoas físicas e empresas.